terça-feira, 9 de março de 2010

UMA SEMANA SOZINHOS DE CELINA MURGA

A discípula argentina de Scorsese
Por Alan de Faria
Cena do filme "Uma Semana Sozinhos", de Celina Murga

A premiada diretora Celina Murga conta como conquistou o apoio do cineasta americano para seu segundo filme, "Uma Semana Sozinhos"
“Uma Semana Sozinhos”, que estreou nos cinemas argentinos em junho deste ano e foi exibido no último mês em São Paulo no Festival de Cinema Latino-Americano, conta a história de adolescentes que moram em um condomínio fechado, observados apenas por uma babá e longe de seus pais.
De acordo com Murga, o interesse em abordar o universo adolescente se deveu às mudanças muito ricas dramaticamente que ocorrem nesta fase da vida e ao fato de as crianças e os adolescentes refletirem o mundo que os rodeiam.
Premiada no Festival do Rio e no Festival de Veneza com “Ana y los Otros” (2003), seu primeiro longa-metragem, a diretora conta em entrevista por e-mail a Trópico como é pertencer à mais talentosa geração de cineastas já surgidos na Argentina e que inclui, entre outros, Daniel Burmán, Pablo Fendrik, da mesma geração que ela, além de Pablo Trapero e Lucrecia Martel, mais velhos.
O filme “Uma Semana Sozinhos” aborda as mudanças que ocorrem durante a adolescência. O que mais te chama atenção nesta fase da vida? Por que decidiu mostrá-la em seu novo filme?
Celina Murga: A infância e a adolescência são as etapas da vida nas quais ocorrem as mudanças mais ricas dramaticamente; momentos nos quais se passam muitas coisas internamente, mas, em geral, não é dada muita atenção a elas ou são poucos valorizadas. Além disso, creio que as crianças e os adolescentes refletem o mundo que os rodeiam. Assim, por meio do olhar deles, eu consigo abordar outros temas.

O filme mostra esses jovens em uma espécie de condomínio fechado. Aqui no Brasil, há muitos lugares como o mostrado no filme, que, embora localizados dentro da cidade, fazem com que os moradores não tenham muito contato com o espaço público. Isso seria um reflexo da violência em cidades grandes como Buenos Aires e mesmo em São Paulo?
Murga: Escolhi ambientar o filme em um “bairro fechado” por que me pareceu mais adequado para falar sobre os temas que excedem os limites desse tipo de lugar. Um dos temas que mais me inquietam é a forte tendência de polarização social, a segregação, algo observado em várias cidades da Argentina. No entanto, a heterogeneidade de uma cidade não é tão evidente nem tão extrema. Dentro dos condomínios fechados, essa tendência social é mais visível, mas de nenhuma maneira penso que são questões que só ocorrem nestes espaços.

Crianças sozinhas, criadas por babás, são um reflexo da nova organização familiar. Você acha que essa situação também reflete algo da situação econômica atual, que leva os pais a se dedicarem cada vez mais ao trabalho?
Murga: De alguma maneira, diria que é, sim, um reflexo dessa tendência social. Mas também acho que seja algo um pouco mais complexo. Vejo que hoje em dia muitos pais querem ser eternamente jovens, ter uma relação mais de amizade do que de autoridade com seus próprios filhos e evitar determinar limites... Em contrapartida, os filhos querem parecer mais velhos e tomar atitudes adultas, por meio da antecipação da sexualidade, do uso de roupas sensuais etc.

“Uma Semana Sozinhos”, seu segundo longa, é uma produção do Martin Scorsese. Como isso aconteceu? Como foi e onde aconteceu o primeiro encontro entre você e o diretor de “Os Infiltrados”?
Murga: Eu conheci Scorsese por meio do programa The Rolex Mentor and Protégé Arts Iniciative. Fui entrevistada por ele, que logo me elegeu para ser sua discípula. Quando isso aconteceu, "Uma Semana Sozinhos" já estava pronto. Mas, como ele gostou muito do filme, decidiu me ajudar, colocando o seu nome nos créditos iniciais e no material de imprensa da produção.

Durante um ano, você foi aluna de Scorsese. O que aprendeu com ele? Já gostava de seus filmes?
Murga: Eu ainda estou frequentando as “aulas” de Scorsese, cujos filmes sempre admirei, desde os meus anos de estudante. Não se trata de classes formais, mas sim de um compartilhamento de experiências, o que nos ajuda a criar um vínculo humano e criativo. Eu aprendo muito ao observá-lo trabalhando com sua equipe no set de filmagem e também na sala de edição. Além disso, ele tem me ajudado no roteiro do meu próximo longa, que irá se chamar “La Tercer Orilla del Rio”.

Assim como “Ana y los Otros”, seu primeiro filme, “Uma Semana Sozinhos” não foi filmado em Buenos Aires, mas sim no campo. Por que essa opção? Onde você vive?
Murga: Eu nasci em Paraná (capital da província argentina Entre Rios, localizada a 480 km da capital argentina), onde foi filmado “Ana y los Otros”. Vivo em Buenos Aires desde os meus 15 anos, quando fui para lá estudar. No entanto, a cidade não tem ainda algo que me atraia visualmente, enquanto que em outros tipos de ambiente, mais calmos, há histórias e personagens que me interessam.

“Ana y los Otros” foi um grande sucesso em festivais em que foi exibido, como o do Rio e o de Veneza. Como foi receber tantas críticas positivas?
Murga: Foi realmente uma surpresa. Não havia nenhuma expectativa do que poderia acontecer com o filme. Na realidade, foi feito para atender a um desejo meu. Assim, fiquei muito feliz com toda a repercussão (“Ana y los Otros” conta a história de uma mulher que, depois de morar em Buenos Aires, retorna a sua cidade natal, onde encontra os velhos amigos, o que a fez repensar sua vida).

Por causa do sucesso de “Ana y los Otros”, sentiu alguma pressão ao decidir filmar “Uma Semana Sozinhos”?
Murga: Um pouco. Com o segundo filme, surgiu um outro tipo de consciência sobre o que estava fazendo. De alguma forma, passei a pensar o que os outros esperariam do meu novo filme. Mas acredito que a pressão mais forte é sempre a interna.

Você é roteirista e diretora de seus dois filmes, “Ana y los Otros” e “Uma Semana Sozinhos”. Qual das duas atividades te atrai mais? Por quê?
Murga: Dirigir, já que me considero mais diretora do que roteirista. Dirigir implica um contato mais forte com a realidade. Quando você está em um set para filmar, por mais que exista um roteiro, a realidade diante da câmera pode se mostrar diferente. Em um set, o imprevisível pode ser positivo para a história e para os personagens. Além disso, dirigir é uma atividade que exige trabalho em equipe, algo que eu valorizo bastante.

Quanto custou “Uma Semana Sozinhos”? É fácil obter dinheiro para produzir filmes na Argentina?
Murga: “Uma Semana Sozinhos” custou cerca de US$ 700 mil (cerca de R$ 1,4 milhão). A lei de fomento ao cinema na Argentina é muito boa. No entanto, para os jovens diretores nem sempre é fácil conseguir dinheiro. Para “Ana y los Ostros”, não tivemos apoio do Estado no início, algo que aconteceu somente depois de o filme ser bem recebido no exterior. Por isso, contamos com o aporte financeiro de muita gente. Para a produção de “Uma Semana Sozinhos”, contamos com o apoio do Incaa (Instituto Nacional de Cine y Artes Audiovisuales).

Em comparação com as produções hollywoodianas, as produções latino-americanas não têm grandes orçamentos. Acredita que seja necessário para a qualidade do filme ter muito dinheiro investido?
Murga: Ao contrário. Acredito que muitas vezes ter um grande orçamento pode ser prejudicial para o filme. Para mim, o mais importante é a história a ser contada e o que se passa com os personagens. Às vezes, uma estrutura muito grande pode fazer com que tudo isso perca o foco, uma vez que os interesses envolvidos no filme podem se tornar mais importantes.

Eu assisti à “Uma Semana Sozinhos” em Buenos Aires, no cinema Gaumont, sala mantida pelo Incaa. Durante o tempo em que fiquei na cidade, pude perceber que não há muitos espaços para a exibição de produções do país. Há muitos cinemas multiplex, onde são exibidas produções hollywoodianas. Há alguma lei que obriga os cinemas a exibirem produções locais? Se sim, o que pensa disso?
Murga: Existe uma lei na Argentina, mas ela, lamentavelmente, não é cumprida (em 2004, o governo argentino determinou que os exibidores são obrigados a exibir produções nacionais por um período determinado e mantê-las em cartaz caso atinjam a média mínima determinada – isso depende da quantidade de cópias lançadas).

Se me coloco no lugar dos exibidores, consigo entender por que não os interessa o cinema argentino. É óbvio que eles ganham mais dinheiro com os blockbusters hollywoodianos. Eles não pensam que o cinema é um elemento cultural importante para um país. Trata-se de um assunto muito sério, uma vez que, a cada ano que se passa, fica mais difícil exibir filmes argentinos. Mas, creio que o Bafici (Festival Internacional de Cinema Independente de Buenos Aires, criado em 1999) é um excelente exemplo de que existe público para filmes nacionais e mais autorais.

Você tem apenas 36 anos e já têm dois filmes em seu currículo. No Brasil, os diretores mais jovens demoram muito tempo para produzir. Na Argentina, por que os diretores conseguem, de alguma forma, ser mais produtivos?
Murga: Não conheço muito bem como é a realidade brasileira. Na Argentina, todavia, filmamos do jeito que for possível, com os recursos que temos. Existe uma grande paixão e uma forte determinação que movem todos os jovens diretores argentinos. Isto pode ser um risco como também uma vantagem.

Pablo Fendrix (“La Sangre Brota”) e Daniel Burman (“As Leis de Família”) também têm 36 anos; Lucía Puenzo (“XXY”) tem 29 –e vou também acrescentar Lucrecia Martel, com 43 anos. Esses dados demonstram que existe uma geração de cineastas com a mesma idade e com uma produção muito fértil. O que acha disso? Vocês conversam entre si sobre a produção argentina e da América Latina?
Murga: Faço parte de uma associação chamada PCI (Projeto de Cinema Independente, em português), formado por muitos diretores jovens. Isto faz com que troquemos muitas ideias e, de alguma maneira, nos ajudemos também.

É possível dizer que há uma geração de cineastas com as mesmas ideias e os mesmos objetivos em Argentina?
Murga: Sim. No entanto, embora algumas ideias e objetivos sejam semelhantes, cada um dos cineastas mantém uma individualidade estética e temática.

No Brasil, muitos dos filmes produzidos na América Latina não são exibidos. Por exemplo, a apresentação de seu filme, “Uma Semana Sozinhos” no Festival de Cinema Latino-Americano pode ser a única chance de o público brasileiro assisti-lo. Qual a sua opinião sobre isso?
Murga: Acredito que seja necessário tentar criar laços de produção e de exibição mais estreitos em toda a América Latina. Para mim, trata-se do principal tema a ser discutido entre todos aqueles que trabalham em qualquer área cinematográfica.

Murga: Tenho visto filmes do Cinema Novo e gosto principalmente daqueles dirigidos por Glauber Rocha –“Deus e o Diabo na Terra do Sol” é incrível! Ele costumava dizer uma frase com qual concordo bastante: “Na arte não é só preciso talento, mas sim valentia principalmente”. Infelizmente, não tenho visto nada de novo, porque não tenho muito acesso. Vi no festival de San Sebastián, em 2007, na mostra Cine em Construcción, o filme “A Festa da Menina Morta” (de Matheus Nachtergaele). Eu gostei bastante, mas não havia sido finalizado ainda.
No ano passado, muitos filmes da América Latina, como “Leonera”, “La Mujer sin Cabeza” e “Linha de Passe”, foram exibidas no Festival do Cannes. Acredita que há um interesse em conhecer a cinematografia latina em festivais internacionais?

Murga: Totalmente! Acho impressionante a expectativa em torno dos filmes latinos nos principais festivais internacionais.

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